sábado, junho 12, 2010

Vidros Duplos

3 de Maio

Por toda a Avenida Sá da Bandeira, reinava um ambiente digno de ser chamado “Festa”. A queima das fitas trazia anualmente um novo alento completamente diferente do habitual. Era por ali, e mais escassamente pelas ruas adjacentes, que se reunia grande parte da população de Coimbra e ainda indivíduos de outras partes de Portugal. Desde estudantes de outras universidades, que inevitavelmente invejavam as dimensões das festas universitárias colimbrienses, até aos pais, irmãos, tios, primos, avós, namorados, amigos dos estudantes. Toda a gente arranjava facilmente um pretexto para marcar presença no grande cortejo da queima das fitas, nem que fosse só para ver o concerto do Quim, ou de uma outra qualquer banda, á noite. Mais de uma centena de carros decorados desciam a avenida oferecendo a todos os presentes, o que a Queima tinha de melhor (na mente da grande maioria dos universitários): Vinho, Cerveja, sandes, Vodka, Shots, leitão, Safari, Absinto e tudo o mais que contivesse uma percentagem de álcool superior a zero por cento…
E assim era o espírito académico, onde cada carro oferecia uma música diferente em decibéis que distorciam o trabalho original feito pelo músico, e a acompanhar todo este frenesim fazia-se ouvir de pouco em pouco tempo as estridentes sirenes das ambulâncias hospitalares.

As pessoas falavam umas com as outras despreocupadamente, riam, bebiam, vomitavam, comiam, urinavam, dançavam… De tudo se via por todos os cantos. A cerveja enfeitava constantemente o ar por cima das pessoas. As latas e garrafas eram despreocupadamente deixadas no chão, tal como os confetis os panfletos, guardanapos, até mesmo livros de curso e objectos portáteis como telemóveis. Tudo isso acabaria mais tarde ou mais sedo por levar uma ou duas pisadelas acabando por se deformar ou deteriorar. Nada no chão tinha direito a grande interesse por parte dos transeuntes. Afinal todo o interesse se passava a mais de um metros acima do chão. Assim se formavam num escasso período de tempo autênticas cordilheiras ao longo do passeio.
Tudo isto era filtrado pelos vidros duplos das janelas da sala do Sr. Alfredo, por onde este olhava com desdém todo o aparato do outro lado das suas janelas. Odiava este dia, e sempre o odiara. A despreocupação vivida pelas pessoas na avenida era lhe completamente intolerável. Para ele, toda esta gente do outro lado da rua lhe repugnava, tanto a gente como a felicidade da gente.
E ali esperava ele, diante da janela, observando toda aquela barafunda, e ouvindo todo aquele barulho que nem os vidros duplos (que ele tinha comprado de propósito) conseguiam cessar.

Por volta das onze da noite quando tudo parecia ter terminado, o Sr. Alfredo inspirou fundo e suspirou. Levantou-se da poltrona que tinha herdado da sua falecida mãe, e dirigiu-se para o quarto. Tinha estado todo o dia de pijama. Começou a preparar-se para o que vinha. Vestindo-se para o dever. Preparando o material que ia precisar.
Saiu para a rua, e aquela palavra inicial, “Festa”, estava agora substituída por uma outra, “Deserto”.
O Sr. Alfredo era um honesto e respeitoso varredor de rua.

Determinismo

2 desperdícios de energia (em joule):

Gabriela Lacerda disse...

Bom texto, boa crítica, bom reparo!
Há muitos senhores Alfredos, por toda a parte, a fazer um pouco de tudo. Eu e tu, até.
Nem com vidros duplos.
Radeai Alcbe Rag, é um anagrama ;)
(foste das 1ªs pessoas, até agora, que se preocupou em perguntar isso)
Beijinhos

Gabriela Lacerda disse...

O que mais contribui para a minha loucura é aprender a ver.
É inevitável.
Tenho que, ou temos que, aprender a fechar os olhos - que não me parece ser o esperado - ou, aprender a mudar o que vêmos :)

Enviar um comentário